Imagem a´rea de 27 de julho mostra a Marina da Glória, no Rio de Janeiro. (Foto: Leo Correo/AP)
Os atletas que vão competir nos Jogos Olímpicos de 2016 terão que nadar
e velejar em águas tão contaminadas por fezes humanas que se arriscarão
a contrair alguma doença e não poder concluir as provas, de acordo com
uma investigação da Associated Press.
Uma análise da qualidade da água encomendada pela AP encontrou níveis
perigosamente altos de vírus e bactérias de esgoto humano em locais de
competições olímpicas e paralímpicas. Esses resultados alarmaram
especialistas internacionais e preocuparam os competidores que treinam
no Rio, alguns dos quais já apresentaram febres, vômitos e diarreia.
A poluição extrema das águas é comum no Brasil, onde a maior parte dos
esgotos não é tratada e uma grande quantidade de resíduos puros corre
por valas abertas até riachos e rios que alimentam os locais das
competições aquáticas dos Jogos Olímpicos.
Em consequência, os atletas olímpicos quase certamente entrarão em
contato com vírus causadores de doenças, que, segundo alguns testes,
estão presentes em níveis até 1,7 milhão de vezes acima do que seria
considerado alarmante em praias no sul da Califórnia, EUA.
Apesar de décadas de promessas oficiais de limpar a sujeira das águas, o
fedor de esgoto ainda recebe os turistas que pousam no aeroporto
internacional Antônio Carlos Jobim. Belas praias estão desertas, porque
as ondas chegam à areia cheias de uma lama pútrida e, de tempos em
tempos, a lagoa olímpica, Rodrigo de Freitas, fica repleta de peixes
mortos em decomposição.
“O que se tem ali é basicamente esgoto puro,” disse John Griffith,
biólogo marinho do instituto independente Southern California Coastal
Water Research Project. Griffith examinou os protocolos, metodologia e
resultados dos testes da AP. “É água dos banheiros, dos chuveiros e do
que as pessoas jogam na pia, tudo misturado, que vai para a água das
praias. Isso seria interditado imediatamente se fosse encontrado aqui”,
disse ele, referindo-se aos Estados Unidos.
Foto
de 28 de julho mostra trabalhadores retirando sujeita em um canal na
Favela da Maré, no Rio de Janeiro (Foto: Silvia Izquierdo/AP)
Autoridades brasileiras encarregadas da qualidade da água nos locais
olímpicos afirmaram que não estão monitorando a presença de vírus.
Mesmo assim, Leonardo Daemon, gerente de Qualidade da Água do Inea,
disse que eles estão seguindo as normas brasileiras de qualidade de água
para uso recreativo, todas baseadas em níveis bacterianos.
“Qual é a norma que deve ser seguida para quantidade de vírus? Porque
presença e ausência de vírus na água ... ela precisa de um padrão, um
limite,” disse Daemon. “Você não tem um padrão, uma norma que transfira a
quantidade de vírus em relação a saúde humana, isso para contato em
água.”
Mais de 10.000 atletas de 205 nações devem competir nos Jogos Olímpicos
do ano que vem. Quase 1.400 deles estarão velejando nas águas próximas
da Marina da Glória na Baía de Guanabara, nadando na praia de Copacabana
e praticando canoagem e remo nas águas insalubres da Lagoa Rodrigo de
Freitas.
A AP encomendou quatro rodadas de testes em cada um desses três locais
de competições olímpicas, e também na água que alcança a areia da praia
de Ipanema, que é muito frequentada por turistas, mas onde não será
realizado nenhum evento. Trinta e sete amostras foram testadas para três
tipos de adenovírus humano, além de rotavírus, enterovírus e coliformes
fecais.
Os testes virais da AP, que continuarão em 2016, indicaram que nenhum
dos locais é seguro para nadar ou velejar, segundo os especialistas em
qualidade da água que tiveram acesso aos dados da AP.
Os resultados dos testes indicaram altas contagens de adenovírus
humanos ativos e infecciosos em algumas amostras, que se replicam no
trato intestinal ou respiratório de pessoas. Esses são vírus conhecidos
por causar doenças estomacais, respiratórias e outras, incluindo
diarreia aguda e vômitos, além de doenças cerebrais e cardíacas, que são
mais graves, porém mais raras.
Foto
de 5 de julho mostra águas fétidas fluindo até a Lagoa Rodrigo de
Freitas, onde estão programadas as provas do remo e canoagem durante as
Olimpíadas de 2016 (Foto: Felipe Dana/AP)
As concentrações dos vírus foram aproximadamente as mesmas que são
encontradas no esgoto puro, mesmo em uma das áreas menos poluídas
testadas, a praia de Copacabana, onde serão realizadas as provas de
natação do triatlo e maratona aquática e onde muitos dos 350.000
turistas estrangeiros esperados poderão dar seus mergulhos.
“Todos correm risco de infecção nessas áreas poluídas”, disse o Dr.
Carlos Terra, hepatologista e presidente do Grupo de Fígado do Rio de Janeiro.
Um especialista americano em avaliação de risco para vírus transmitidos
pela água examinou os dados da AP e estimou que os atletas
internacionais em todos os locais de competições aquáticas teriam uma
chance de 99% de infecção ao ingerir apenas três colheres de chá da
água, embora a probabilidade de uma pessoa ficar doente dependa da
imunidade e de outros fatores.
Além dos nadadores, os atletas de iatismo, canoagem e, em menor grau,
de remo com frequência ficam encharcados durante a competição, e também
respiram as gotículas no ar.
A Lagoa Rodrigo de Freitas, que passou por obras de limpeza em anos
recentes, foi declarada segura para remadores e canoístas. No entanto,
os testes da AP revelaram que suas águas estão entre as mais poluídas
dos locais de competições olímpicas, com resultados que variam de 14
milhões de adenovírus por litro no extremo inferior a 1,7 bilhão por
litro no extremo superior.
Em comparação, especialistas em qualidade da água que monitoram praias
no sul da Califórnia ficam alarmados se encontram contagens virais de
1.000 por litro. “Se eu fosse participar das Olimpíadas”, diz Griffith, o
especialista em água da Califórnia, “provavelmente chegaria com
antecedência, para me expor e fortalecer meu sistema imunológico contra
esses vírus antes de competir, porque não vejo como eles vão resolver
esse problema do esgoto”.
Risco enorme para os atletas
Ivan Bulaja, o técnico croata da equipe de iatismo austríaca da classe
49er, está começando a compreender isso. Ele disse que seus iatistas
perdem valiosos dias de treino depois de ficar doentes com vômitos e
diarreia. “Esta é de longe a pior qualidade de água que já vimos em toda
a nossa carreira no iatismo”, disse Bulaja.
Treinando no início deste mês na Baía de Guanabara, o velejador
austríaco David Hussl conta que ele e seus colegas de equipe tomam
precauções, como lavar o rosto imediatamente com água mineral quando se
molham com as ondas e tomar banho assim que retornam à terra. No
entanto, Hussl disse que adoeceu várias vezes. “Tive febre e problemas
de estômago”, disse ele. “É sempre um dia totalmente na cama e, depois,
mais uns dois ou três dias sem velejar.”
"É um risco enorme para os atletas", diz o técnico. “A gente vive por
uma medalha olímpica”, afirma Bulaja, “e pode realmente acontecer de
ficar doente alguns dias antes da prova e não conseguir competir”.
O Dr. Alberto Chebabo, que chefia o Serviço de Doenças Infecciosas e
Parasitárias do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ,
disse que o esgoto puro é causa de problemas de saúde pública
“endêmicos” entre os brasileiros, principalmente diarreia infecciosa em
crianças.
Quando chegam à adolescência, disse ele, as pessoas no Rio já foram tão expostas aos vírus que desenvolvem anticorpos.
Mas os atletas e turistas estrangeiros não terão essa proteção. “Alguém
que não foi exposto a essa falta de saneamento e vai a uma praia
poluída corre, obviamente, um risco muito mais alto de ser infectado”,
disse Chebabo.
Estima-se que 60% dos brasileiros adultos tenham sido expostos à
hepatite A, segundo o hepatologista Dr. Terra. Os médicos insistem que
estrangeiros que vierem ao Rio, sejam atletas ou turistas, vacinem-se
contra hepatite A. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos
Estados Unidos também recomendam que os viajantes ao Brasil sejam
vacinados para febre tifoide.
Foto
de 28 de abril mostra Fernando Spilki, virologista e coordenador do
programa de qualidade ambiental da Universidade Feevale, em Novo
Hamburgo, que realizou testes de qualidade da água para a AP na Marina
da Glória (Foto: Felipe Dana/AP)
Sob o microscópio
Fernando Spilki, virologista e coordenador do programa de qualidade
ambiental da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, realizou os testes
de qualidade da água para a AP. Os testes de Spilki pesquisaram três
tipos diferentes de adenovírus humano que são “marcadores” típicos dos
esgotos humanos no Brasil. Ele fez testes também para enterovírus, a
causa mais comum de infecções do trato respiratório superior em jovens.
Pesquisou ainda sinais de rotavírus, a principal causa mundial de
gastroenterite.
Os testes até agora mostram que as águas do Rio “estão cronicamente
contaminadas”, disse ele. “A quantidade de matéria fecal que entra nos
corpos de água no Brasil é extremamente alta. Infelizmente, temos níveis
comparáveis a algumas nações africanas, à Índia.”
“A preocupação não é apenas com o que foi testado”, disse Griffith, o
pesquisador norte americano. “É muito provável que haja organismos ainda
piores que não foram pesquisados e que estejam ali escondidos”.
Não há falta de doenças no Rio, mas há uma grave escassez de dados
sanitários referentes à água suja, disseram médicos especialistas.
As doenças com frequência acometem as pessoas com intensidade, mas a
maioria não procura um médico, que provavelmente lhes recomendaria
hidratação e repouso. Os pacientes raramente acompanham a evolução da
doença em uma clínica, dizem os médicos.
Mundialmente, porém, o rotavírus é responsável por cerca de 2 milhões
de hospitalizações e mais de 450.000 mortes de crianças a cada ano, de
acordo com a Organização Mundial da Saúde.
Os testes encomendados pela AP encontraram o rotavírus em três ocasiões
separadas nos locais de provas olímpicas: duas vezes na lagoa e uma vez
na praia ao lado da Marina da Glória, de onde os velejadores sairão com
seus barcos.
Kristina Mena, professora associada de saúde pública no Centro de
Ciências da Saúde da Universidade do Texas em Houston e especialista em
qualidade da água, fez o que chamou de uma avaliação de risco
“conservadora” para os atletas olímpicos que participarem de esportes
aquáticos no Rio, considerando uma ingestão de 16 mililitros de água, ou
três colheres de chá, bem menos do que os próprios atletas dizem que
engolem.
Ela disse que encontrou “um risco de infecção de 99%”. “Com esses
níveis de concentração viral, quer saber se eu acho que alguém deveria
se expor a essas quantidades? A resposta é não”.
A AP também mediu a concentração de coliformes fecais, bactérias
unicelulares que vivem no intestino de humanos e animais. Coliformes
fecais podem sugerir a presença de cólera, disenteria, hepatite A e
febre tifoide.
Em 75% das amostras colhidas na lagoa olímpica, o número de coliformes
fecais excedeu o limite legal brasileiro para “contato secundário”, como
navegação ou remo, tendo ficado, em duas amostras, mais de 10 vezes
acima do nível aceitável. A Marina da Glória excedeu o limite apenas uma
vez, enquanto na praia mais frequentada pelos turistas no Rio, Ipanema,
a concentração de coliformes fecais ficou três vezes acima do nível
aceitável em uma única amostra. Em Copacabana, os testes da AP não
encontraram nenhum excesso de concentração de coliformes fecais.
Os coliformes fecais são usados há muito tempo pela maioria dos
governos como um marcador para determinar se corpos de água estão
poluídos, por serem relativamente fáceis e baratos de testar e
encontrar. O Brasil mede somente os níveis bacterianos para determinar a
qualidade da água.
No Rio, os níveis de coliformes fecais não foram tão astronômicos
quanto os níveis virais que a AP encontrou. Essa discrepância está no
centro de um debate global entre especialistas em água, muitos dos quais
estão pressionando os governos a adotar testes virais, além dos
bacterianos, para determinar a segurança da água para atividades de
recreação.
O motivo é que os coliformes fecais do esgoto só conseguem sobreviver
um período curto na água, especialmente nas condições de sal e sol do
Rio de Janeiro. Os adenovírus humanos, por sua vez, podem sobreviver
vários meses, ou talvez até anos, segundo alguns estudos.
Isso significa que, mesmo que o Rio coletasse e tratasse magicamente
todo o seu esgoto amanhã, as águas ainda permaneceriam poluídas por um
bom tempo.
'Uma oportunidade perdida'
Na candidatura olímpica, as autoridades cariocas prometeram que os
jogos “recuperariam as águas magníficas do Rio” com um programa
governamental de US$ 4 bilhões para expansão da infraestrutura de
saneamento básico.
Essa foi a mais recente de uma longa lista de promessas que já custaram
aos contribuintes brasileiros mais de US$ 1 bilhão, com muito pouco
resultado.
O problema histórico de esgotos no Rio de Janeiro intensificou-se nas
últimas décadas devido à explosão populacional, que levou muitos dos 12
milhões de habitantes da área metropolitana a se estabelecer nas imensas
favelas que margeiam a baía.
O lixo flui para mais de 50 riachos que desembocam na antes cristalina
Baía de Guanabara. Um fedor de lacrimejar os olhos emana de boa parte da
baía e de suas praias adornadas com palmeiras, locais muito
frequentados por praticantes de natação até a década de 1970, mas agora
perpetuamente vedados para essa prática.
Toneladas de lixo caseiro – potes de margarina, bolas de futebol
murchas, sofás encharcados e máquinas de lavar – acumulam-se junto à
linha costeira e formam ilhas de resíduos.
Desde 1993, a agência de cooperação internacional do Japão despejou
centenas de milhões de dólares em um projeto de limpeza da baía. O Banco
Interamericano de Desenvolvimento liberou US$ 452 milhões em
empréstimos para mais obras.
Uma cultura de mau gerenciamento mostrou-se um entrave para qualquer
avanço. Durante anos, nenhuma das quatro estações de tratamento de
esgotos construídas com o dinheiro japonês funcionou com plena
capacidade.
Uma das estações, em Duque de Caxias, não tratou nem uma gota de esgoto
desde sua construção em 2000 até sua inauguração em 2014. Por 14 anos,
não esteve sequer conectada à rede de esgotos.
A essa altura, a agência japonesa já tinha classificado o projeto como
“insatisfatório”, sem “nenhuma melhoria significativa na qualidade da
água da baía”.
Como parte do seu projeto olímpico, o Brasil prometeu construir
unidades de tratamento de residuos em oito rios para filtrar boa parte
dos esgotos e impedir que toneladas de resíduos caseiros fluíssem para a
Baía de Guanabara. Apenas uma foi construída.
As lagoas verdes fluorescentes que contornam o Parque Olímpico e que
dados do próprio governo mostram estar entre as águas mais poluídas do
Rio de Janeiro seriam dragadas, mas o projeto ficou preso em emaranhados
burocráticos e ainda não começou.
“As autoridades brasileiras prometeram a lua para sediar as Olimpíadas,
e, como é de praxe, não vão honrar com o seus compromissos”, disse
Mario Moscatelli, um biólogo que passou 20 anos lutando pela limpeza das
águas do Rio de Janeiro. “Estou entristecido, mas não estou espantado”.
Conforme o tempo avança, as autoridades locais reduzem suas promessas. O
governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, reconheceu que “para a
Olimpíada não dá tempo” de terminar a limpeza da baía.
O Prefeito do Rio, Eduardo Paes, disse que foi uma “pena” que as
promessas olímpicas não tenham sido cumpridas, acrescentando que os
jogos estão se mostrando “uma oportunidade perdida” no que diz respeito à
qualidade das águas.
Mas o website do comitê organizador dos Jogos Olímpicos do Rio ainda
afirma que um legado fundamental dos jogos será “a recuperação e
proteção do patrimônio ambiental único da região, incluindo as baías e
canais” em áreas onde os esportes aquáticos acontecerão.
O redator de esportes Stephen Wade e a produtora sênior Yesica Fisch da Associated Press contribuíram para esta reportagem.