É fácil condenar a atitude do juiz Marcelo Maia Montalvão, de Lagarto (SE), ao mandar tirar do ar por 72 horas o comunicador WhatsApp, por se recusar a fornecer informacões numa investigação sobre tráfico de drogas, sob a alegação de não armazená-las. Se a empresa não cumpriu uma ordem judicial, o que têm os 100 milhões de seus usuários a ver com isso?

O caso, mais complexo, se desdobra em dois pontos. Primeiro, que punições um juiz deve ter direito de impor a uma empresa no meio digital?  Segundo, que obrigações uma empresa deve ter diante da Justiça e da privacidade de seus usuários? Aprovado com muita fanfarra e sob aplausos, o Marco Civil da Intenet não responde a nenhuma das duas questões de modo satisfatório.

A lei confere a qualquer juiz a possibilidade de multa, suspensão temporária ou definitiva dos serviços, além da prisão de executivos. Não é difícil imaginar casos em que essas punições possam ser razoáveis. Mas como garantir que a aplicação de sanções seja proporcional ao delito? A lei é omissa. A decisão cabe aos juízes. A retirada do WhatsApp do ar pela segunda vez mostra que, assim, a lei não está funcionando bem. A criação de varas digitais especializadas, encarregadas de aplicar as punições, poderia ajudar a estabelecer critérios mais objetivos na sua aplicação. Isso envolveria uma nova mudança legislativa.

O segundo ponto é ainda mais importante. O WhatsApp argumenta que, ao adotar uma tecnologia conhecida como “criptografia de ponta a ponta” em suas mensagens, é impossível à empresa conhecer seu conteúdo, de modo a fornecê-lo à Justiça. Também afirma que nem sequer armazena informações relativas a horários e locais de transmissão, chamadas de “metadados”, que poderiam ajudar em investigações.

O WhatsApp afirma ter adotado um método de criptografia aberto, conhecido como TextSecure. Para codificar as mensagens, diz usar chaves númericas de 256 bits, um tamanho suficiente para tornar inviável qualquer tentativa de adivinhar as chaves por meio de testes aleatórios em computador – com o melhor supercomputador do mundo, um ataque desses levaria um número incontável de vezes a idade do Universo para surtir efeito.

Mas nem todos os usuários do WhatsApp usam criptografia, muitos por não ter atualizado o aplicativo para a versão mais recente. A alegação de que a empresa não armazena metadados também precisa ser vista com certo ceticismo. De todo modo, a lei não estabelece que ela tenha obrigação de fazer isso. A maior controvérsia entre a Justiça e as empresas da internet é até que ponto a privacidade deve ser protegida – ainda que isso proteja também os criminosos.

Não se trata de uma questão trivial. A Justiça gostaria que as empresas de internet funcionassem como empresas de telefonia, obrigadas a ceder todo tipo de informação e a implantar dispositivos de monitoramento, mediante mandado expedido por um juiz. Mas duas diferenças importantes mostram por que isso é difícil, quando não impossível.

Do ponto de vista da empresa, implantar os dispositivos que permitam armazenamento de metadados ou implantação de escuta equivale a um custo que, como argumenta o WhatsApp, pode prejudicar a qualidade do serviço. Num mercado global, adequar-se à legislação de diversos países pode tornar-se também um pandemônio do ponto de vista técnico. A diversidade de concorrentes e de recursos oferecidos dá uma boa ideia de que, embora não seja impossível vencer a barreira técnica, é um erro negá-la ao reproduzir as práticas usadas na telefonia.

A segunda diferença é ainda mais importante. Abrir a porta dos aplicativos para a polícia também significa abri-la para o crime. Não há como fazer uma coisa sem fazer a outra, como ficou sobejamente demonstrado no caso em que a Apple se recusou a quebrar a criptografia do iPhone de um terrorista e entrou em conflito com o FBI. Se você quiser entender melhor essa questão, vale a pena ler este relatório, elaborado pelos maiores especialistas do mundo em segurança digital, ou então simplesmente assistir ao vídeo do comediante John Oliver sobre o tema. A única vantagem do bloqueio descabido do WhatsApp pode ter sido acordar o brasileiro para essa discussão, relevante hoje em qualquer país do mundo.