Paulo Victor Chagas / Agência Brasil
Primeiro destino da missionária foi município de Coroatá, no Maranhão, onde chegou em 1966, aos 35 anos.
ANAPU
(PA) - A vida de Dorothy Stang foi marcada por uma intensa luta pelo
direito à terra dos numerosos camponeses que migraram para o Norte do
país em busca de sustento. O primeiro destino da missionária nascida nos
Estados Unidos, mas naturalizada brasileira, foi o município de
Coroatá, no Maranhão, onde chegou em 1966, aos 35 anos.
Freira da
Congregação Notre Dame de Namur, irmã Dorothy percebeu cedo o movimento
de exploração que começava a tomar conta da Floresta Amazônica.
Incentivados pelo governo, muitos fazendeiros derrubavam a mata e faziam
testes para saber o que poderia ser produzido ali. Como consequência,
pequenos agricultores vindos do Nordeste, em especial do Maranhão,
começaram a ser expulsos e a migrar para regiões do interior do Pará.
De
acordo com a missionária Rebeca Spires, os camponeses nordestinos
souberam da existência de lotes à disposição de colonos às margens da
Rodovia Transamazônica, que estava sendo construída.
“Aí ela [Dorothy] disse: 'Olha, o nosso povo está migrando para o Pará. Vamos também. A gente não pode deixar o povo ir embora e ficar aqui'. Foi por esse motivo que viemos”, relembra a freira, amiga de Dorothy.
“Aí ela [Dorothy] disse: 'Olha, o nosso povo está migrando para o Pará. Vamos também. A gente não pode deixar o povo ir embora e ficar aqui'. Foi por esse motivo que viemos”, relembra a freira, amiga de Dorothy.
Ainda
na década de 1970, sob o lema “Integrar para não Entregar”, o governo
brasileiro começou a vender lotes de terras no Pará, denominados
Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATP).
“Nós que estamos
aqui fomos colocados há 35 anos e educados para quê? Nós tínhamos que
desmatar para que outro país não viesse tomar a nossa Amazônia Legal.
Era para plantar arroz e capim. Era para desmatar mesmo, ou seja,
desbravar”, lembra Francisco de Jesus Portela, cacaueiro em Anapu.
Esses
documentos eram concedidos a pessoas que, na maioria dos casos, não
chegaram a visitar ou conhecer os lotes. Os contratos previam ainda que,
caso os donos não fizessem nenhuma benfeitoria no prazo de cinco anos
após a compra, as terras seriam devolvidas à União. Mas esses lotes
foram revendidos a outras pessoas que, anos depois, alegaram desconhecer
essa cláusula e reivindicavam a posse dos terrenos. Nessa época
começaram a surgir também os contratos forjados, praticados por
grileiros.
Nesse complicado cenário fundiário – em que a União, os
fazendeiros e pequenos proprietários disputavam espaço -, a missionária
Dorothy Stang surge como uma voz a favor dos camponeses pobres.
Dom Erwin Krautler, bispo do Xingu, conta que, com a chegada dos grandes fazendeiros que se diziam donos dos terrenos, o conflito se tornou ainda mais visível. Para ele, os órgãos do governo foram “negligentes e omissos”.
Dom Erwin Krautler, bispo do Xingu, conta que, com a chegada dos grandes fazendeiros que se diziam donos dos terrenos, o conflito se tornou ainda mais visível. Para ele, os órgãos do governo foram “negligentes e omissos”.
“Na área do atual município de Anapu a migração era
desordenada e, em consequência, a situação das famílias, desde o começo,
muito precária. Esse foi o ambiente em que irmã Dorothy entrou em cena e
a fez tomar a decisão de apoiar os pobres na sua luta pela realização
do sonho de ganhar o tão sonhado pedaço de chão”.
Com a sua
chegada em Anapu, em 1982, a missionária começou a reivindicar os
direitos de pequenos agricultores e estimulou a sua organização, como
lembra a missionária Rebeca Spires.
“A primeira coisa que a
Dorothy me disse foi: 'Você tem que aprender a Bíblia em português, mas
tem que aprender o Estatuto da Terra. Porque nós trabalhamos com
lavradores e eles têm que saber como defender seus direitos. Os direitos
que a lei reconhece, a gente tem que conhecer e ensinar o povo para
eles saberem como batalhar por si. A gente não vai ficar a vida inteira
batalhando por eles, eles que têm que fazer'”, recorda.
A
missionária conta que o protagonismo de Dorothy era visível em sua forma
de liderar e ensinar. Ela estabeleceu dezenas de escolas por onde
passava na base do “Você sabe ler? Então você pega essas crianças e
ensina”.
“Sempre que a Dorothy vinha aqui na cidade [Belém], ela
trazia alguns lavradores juntos para mostrar, aqui tem o Ibama
[Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis], aqui tem o Incra [Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária], você busca aqui. Para que amanhã ou depois eles
fizessem, não ela”, destaca Rebeca.
Foi dessa maneira que Dorothy
Stang passou a auxiliar os pequenos produtores rurais que chegavam à
região, sem orientação, à procura de um terreno para produzir.
Dom Erwin, que à época era o responsável por designar os locais onde os missionários deveriam atuar, lembra da chegada de Dorothy ao município.
Dom Erwin, que à época era o responsável por designar os locais onde os missionários deveriam atuar, lembra da chegada de Dorothy ao município.
“Lembro-me
perfeitamente da visita daquela senhora de vozinha mansa e sotaque
estadunidense bastante acentuado. Vinha falar com o bispo para ver se
ela e sua congregação podiam trabalhar na Prelazia do Xingu. Com a
migração contínua à Transamazônica e a outras regiões da Prelazia,
qualquer congregação de religiosas era bem-vinda e, logicamente, aceitei
a proposta sem logo pensar numa determinada área de atuação”, recorda o
bispo.
Ele lembra também que a freira alimentava o sonho de trabalhar entre os camponeses mais carentes da região.
“Ela
logo me avisou que queria 'trabalhar entre os pobres mais pobres'.
Brinquei e disse que como cidadã norte-americana, oriunda do aprazível
Estado de Ohio, certamente ela não conhecia a pobreza extrema. Falei
logo da Transamazônica-Leste, região infestada de doenças tropicais onde
vive gente que não tem onde cair morta. Ela nem me deixou terminar de
falar e respondeu: 'Então eu quero ir'. Tentei ponderar: 'Mas a senhora
não vai aguentar'. E ela: 'Deixe-me pelo menos fazer uma experiência'.
Pensei que depois de poucas semanas viria pedir-me outra área ou então
estaria já curtindo a primeira malária. Enganei-me redondamente”, relata
dom Erwin.
Para muitos moradores da cidade, entretanto, a
presença de Dorothy era um empecilho ao desenvolvimento econômico da
cidade. “Alguém ia perder a terra porque não tinha documento. Foi o que
culminou com a morte da irmã Dorothy”, explica Paulo Anacleto, taxista e
vereador na época em que a tensão por terra começou a aumentar. No
início dos anos 2000, várias manifestações contrárias à criação do
Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) – incentivado por Dorothy
Stang – foram promovidas na cidade.
José Carlos Pereira, que foi
presidente da associação dos comerciantes de Anapu, diz que o
entendimento à época era o de que possíveis prejuízos para os
madeireiros e fazendeiros também se refletiriam nos resultados do
comércio. “O objetivo das manifestações era resgatar o nosso município,
que estava prestes a ser tomado por alguém que você não sabia nem quem
era”, revela.
“Foram feitos vários movimentos porque naquela época
ficava todo mundo desesperado com o que podia acontecer. Madeireiro não
vai serrar árvore, fazendeiro não pode ter terra. Tinha gente que tinha
fazenda com dois mil bois, que foi desapropriado”, lembra.
Para desestimular as ações a favor da reforma agrária protagonizadas por Dorothy Stang, a Câmara dos Vereadores de Anapu aprovou uma moção de persona non grata à missionária em 2002.
Para desestimular as ações a favor da reforma agrária protagonizadas por Dorothy Stang, a Câmara dos Vereadores de Anapu aprovou uma moção de persona non grata à missionária em 2002.
“Ninguém tinha nada
contra ela. A gente via o risco que ela corria e tinha uma preocupação
de acontecer algo, então a gente fez aquela moção para que ela fosse
embora daqui com vida. Era a nossa intenção, que ela deixasse os
madeireiros, na época, e os fazendeiros, que eram ameaçados, viver em
paz. A gente achava que com a saída dela, tanto o setor madeireiro
quanto o setor pecuarista, ia ter sossego”, justifica o antigo
presidente da associação de comerciantes.
Dez anos depois, José
Carlos Pereira admite que a sua opinião é diferente. “Se hoje eu tivesse
de fazer o que eu fiz [manifestações], eu parava duas vezes para
pensar. Até porque muita coisa mudou com a implantação do PDS”,
reconhece.
“A gente está vendo grandes exemplos lá em São Paulo,
lá em Minas, faltando água até para beber. E se isso [a implantação do
PDS] não tivesse acontecido para dar um freio aqui, daqui 20, 30 anos,
nós estaríamos passando pela mesma situação. Então, hoje, eu dou a mão à
palmatória. Pelo menos em parte, ela tinha razão”, diz.
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