Kelly dos Santos e Mateus Alves, 14 anos, desapareceram por cinco dias.
Eles alegam que atingiram objetivo de obter maior diálogo com os pais.
Kelly
dos Santos e Mateus Alves, ambos de 14 anos, decidiram fugir de casa no
aniversário de 5 meses de namoro (Foto: Marcelo Mora/G1)
"Pode dizer, isso tudo foi uma loucura, né?", arrisca, em um impulso, a
adolescente Kelly dos Santos, de 14 anos, antes mesmo de a entrevista
começar na casa do namorado, o também adolescente Mateus Alves, de mesma
idade, em um bairro afastado de Guarulhos (Grande São Paulo).
Mais de uma hora de bate-papo depois, de muitos sorrisos, alguns
constrangidos, outros mais soltos, de troca de gracejos mútuos e de
carícias, a jovem de cabelos vermelhos que combinam com as tênues sardas
do rosto faz questão de deixar claro, no entanto, que o casal não está
arrependido da fuga de suas respectivas residências e da epopeia que
viveram desde a última quarta-feira (23) até domingo (27), quando
finalmente reencontraram os pais.
“Nunca achei que fosse uma loucura. Valeu a pena porque as coisas
mudaram por aqui. Não estou arrependida. Eu faria de novo. Vou ter muita
coisa para contar para os meus filhos”, afirmou, como conclusão da
aventura vivida ao lado do primeiro namorado.
Com um corte de cabelo semelhante ao do cantor teen Justin Bieber no
início de carreira, Mateus não demonstra a mesma segurança que a exibida
pela namorada em relação à solução radical que encontraram para ficar
juntos, mas aparenta alívio com as mudanças recentes em que suas ações
resultaram.
“Tomamos essa decisão por medo de nos separarmos, da minha parte e da
parte dela. Então, para mim, tinha de ser, tinha que ser, e ela também
decidiu isso e para ela também tinha que ser assim. (...) Por enquanto,
melhorou tudo, porque a família está mais ligada, há mais diálogo. Mas
vamos conversar ainda”, ressalta.
A noite da segunda-feira (28) seria - e, provavelmente, os próximos
dias serão – para discutir a relação entre pais e filhos. Ao menos,
essa foi a promessa de Cristiane Alves de Souza, mãe de Mateus, e de
José Manuel, pai de Kelly. E a DR (gíria para discutir a relação) seria
mesmo em família, com todos reunidos.
“Vou conversar com ele hoje (segunda-feira) também. Chamei o pai dele e
vamos ter uma conversa. O primeiro ponto é ouvir, tanto ele quanto ela.
Procurar ver onde estavam os erros e procurar conversar. Nada como um
diálogo para se resolver as coisas. Nada de botar uma mochila nas costas
e sair por aí. Tantos eles quanto nós sofremos muito. A mudança tem que
vir das duas partes. Mesmo estando distante, morando com a avó dele,
ele sabe que pode contar comigo e com o pai dele”, afirma Cristiane.
Casal ficou de mãos dadas durante quase toda
a entrevista (Foto: Marcelo Mora/G1)
a entrevista (Foto: Marcelo Mora/G1)
José Manuel fez um mea culpa e admitiu erros da parte dele e
também tentou se mostrou aberto ao diálogo com a filha. “Já me entendi
com ela, sim, mas ainda não conversamos tudo o que temos para conversar.
Espero que a conversa seja amigável. Espero que eles cumpram algumas
regras e que não voltem a fazer uma bobagem dessas. Porque, além de eles
correrem risco, acabaram com a família. A família morreu durante estes
dias. (...) Todo mundo erra. Eu errei em algumas partes, mas estou
disposto a conversar. “
De todo modo, Mateus e Kelly, com certeza, já têm história para contar
para os pais, parentes, amigos e, quem sabe um dia, até para os filhos.
Um história de aventura com alguns sustos, de medo, fome, cansaço, dor e
privações. Mas uma história também de coragem, ousadia, solidariedade,
compaixão e amor, claro. Afinal, o(a) primeiro(a) namorado(a) ninguém
esquece.
Planejamento
Mateus e Kelly moram em residências próximas, mas só se conheceram por atuarem em vídeos para um canal específico do Youtube. No final de janeiro, atuaram juntos em um destes vídeos. Pouco depois, começaram a namorar – aliás, o primeiro namoro de ambos. No dia 23 de fevereiro, Mateus foi até a casa de Kelly para pedi-la em namoro junto ao pai dela. “A turma do vídeo toda foi comigo para ver eu fazer o pedido. Ele disse: ‘Não faça com a minha filha o que você não quer que faça com a sua um dia.’”, conta, dando risada.
Mateus e Kelly moram em residências próximas, mas só se conheceram por atuarem em vídeos para um canal específico do Youtube. No final de janeiro, atuaram juntos em um destes vídeos. Pouco depois, começaram a namorar – aliás, o primeiro namoro de ambos. No dia 23 de fevereiro, Mateus foi até a casa de Kelly para pedi-la em namoro junto ao pai dela. “A turma do vídeo toda foi comigo para ver eu fazer o pedido. Ele disse: ‘Não faça com a minha filha o que você não quer que faça com a sua um dia.’”, conta, dando risada.
O namoro só acontecia entre quatro paredes, na casa dela ou dele. Com
as restrições impostas, principalmente por parte do pai de Kelly, o
casal começou a cogitar a fuga de casa. “Foram três vezes que falamos em
fugir. Da última vez, foi por causa de uma nota baixa que ela tirou e o
pai dela começou a brigar com ela. Ao mesmo tempo, a minha mãe começou a
falar que iria me levar para morar com ela em São Paulo. Eu não queria
isso”, disse Mateus.
Diante de uma possibilidade de separação, o casal começou a fazer
planos. Kelly se encarregou de levantar o dinheiro para a fuga; Mateus
tratou do planejamento, como os roteiros e o que iriam levar. Kelly
juntou, ao todo, R$ 367,00. Enquanto isso, Mateus elaborava o roteiro,
pesquisando na internet.
A data para partida foi 23 de julho, aniversário de cinco meses de namoro. O destino escolhido foi a cidade de Itanhaém,
no litoral sul do estado. “Sabia apenas que tinha praias boas”,
justifica. Na bagagem, três mochilas, com poucas roupas, produtos de
higiene pessoal, comida, como macarrão instantâneo e biscoitos, uma
panela, um violão e dois skates – isso mesmo, dois skates. “Estava
planejando morar lá e trabalhar tocando e cantando em algum lugar, algum
bar”, contou.
Logo depois de iniciarem a fuga, pararam em um supermercado em Guarulhos
para comprar uma barraca, ao custo de R$ 46,00. “Uma mulher que estava
na frente do mercado falou assim quando nos viu: ‘Suas mães devem estar
com o coração na mão.’”, lembrou Mateus.
Responsável
pelo planejamento da fuga, Mateus pesquisou todo o roteiro pela
internet para tentar chegar em Itanhaém, no litoral sul do estado (Foto:
Marcelo Mora/G1)
1º Dia (quarta-feira, 23)Pelo roteiro traçado com bastante antecedência, no dia 18 de junho, o casal pegaria um ônibus de Guarulhos até a Estação Armênia do Metrô, na Zona Norte. De lá, seguiriam até a Estação Ana Rosa, onde fariam a baldeação para a Estação Tamanduateí, já na linha verde do Metrô. A partir daí, pegariam um ônibus para Ribeirão Pires, ponto de partida para o litoral pelo Caminho do Mar, antiga estrada de acesso à Baixada Santista, atualmente fechada para veículos.
O casal conseguiu chegar em Ribeirão Pires, na região metropolitana, na noite de quarta-feira. Nesta cidade, depois de muito caminhar em busca de um local para armarem a barraca, tiveram de pernoitar na calçada de um bairro nobre, segundo Kelly. “Por volta das 3h (de quinta-feira, 24), passou um carro de polícia por nós, mas não falaram nada. Nessa hora, entrei em pânico”, recordou Kelly.
2º Dia (quinta-feira, 24)
Na manhã de quinta-feira, eles seguiram a pé pela Rodovia Índio Tibiriça - que liga a Via Anchieta até a cidade de Suzano - até o Caminho do Mar, onde chegaram por volta do meio-dia. Segundo eles, as pessoas que os avistavam perguntavam se eles estavam drogados. Depois, procuravam aconselhá-los, em vão, a retornar para casa. Em contrapartida, em momento algum foram abordados por policiais, militares ou rodoviários, seja em área urbano ou na rodovia.
“Nosso objetivo era descer até Cubatão (na Baixada Santista) e pegar um ônibus até Bertioga (no litoral norte). De lá, pegaríamos outro ônibus até a Praia Grande (na Baixada Santista) e, depois, mais um ônibus para Itanhaém (no litoral sul)”, revelou.
Se dar ao trabalho de viajar de um lado para outro no litoral tinha por objetivo evitar passar por postos rodoviários nas estradas mais movimentadas, revelou Mateus. Além disso, também evitaram pegar ônibus em rodoviárias intermunicipais. “Pois eles iriam pedir os nossos documentos”, justifica Mateus. Para completar, cortaram laços de vez com suas famílias ao retirarem os chips de seus celulares. Posteriormente, os aparelhos foram destruídos.
De bagagem, o casal levou três mochilas, panela, barraca, um violão e dois skates (Foto: Marcelo Mora/G1)
Já no Caminho do Mar, andaram por cerca de 900 metros. “Estava dando
tudo certo até aí. Mas começou a ter muito mosquito, negócios de
macumba, o frio”, relata Mateus. E a sensação de medo foi inevitável.
Para demovê-los de vez da ideia de seguirem até Cubatão, um outro casal
que passava pelo local informou-lhes que a trilha até a cidade era muito
longe e perigosa.
Desta forma, o casal decidiu retornar para Ribeirão Pires de ônibus. Na
volta, Mateus passou mal e teve uma crise de choro. “Ele não parou de
chorar a viagem toda de ônibus”, relembra Kelly. “Não lembro de nada”,
completa Mateus, sem saber explicar o motivo da crise. Em Ribeirão
Pires, dormiram mais uma vez na calçada de um outro bairro nobre.
3º Dia (Sexta-feira, 25)
Na sexta-feira, vagaram pelas ruas de Ribeirão Pires, comendo em lojas de conveniência de postos de gasolina. Por fim, decidiram pegar o trem da CPTM. “Ficamos para lá e para cá nas estações, para ver onde iríamos dormir na noite seguinte. A intenção era ir para Liberdade (região central de São Paulo)”, relembra Mateus.
Na sexta-feira, vagaram pelas ruas de Ribeirão Pires, comendo em lojas de conveniência de postos de gasolina. Por fim, decidiram pegar o trem da CPTM. “Ficamos para lá e para cá nas estações, para ver onde iríamos dormir na noite seguinte. A intenção era ir para Liberdade (região central de São Paulo)”, relembra Mateus.
Por fim, se decidiram pela Estação Praça da Árvore do Metrô, na Zona
Sul da capital. “Ele achou que haveria uma praça com árvores e que
íriamos poder acampar nesta praça”, recordou Kelly. Antes, porém, o
casal foi até um shopping da Zona Norte para comprar mantas. “Pagamos R$
25 cada uma”, diz Kelly.
Apesar disso, o frio se tornou insuportável assim que a noite caiu. E
mais uma vez Mateus teve uma crise e chorou. “Dormimos em uma viela.
Tremíamos tanto até o dente doer”, recordou. Enquanto um dormia, o outro
vigiava, para evitar que fossem roubados ou até mesmo vítimas de algum
tipo de violência.
4º Dia (Sábado, 26)
No dia seguinte, o casal conheceu um rapaz chamado Paulo, que morava próximo, com quem conversaram. “Ele nos disse onde tinha uma casa para alugar, por R$ 450, e onde procurar emprego. E conseguimos, em uma lanchonete. A proprietária iria nos pagar R$ 100 por mês para cada um, para fazermos de tudo na lanchonete. Era para começarmos hoje (segunda-feira)”, conta Mateus.
No dia seguinte, o casal conheceu um rapaz chamado Paulo, que morava próximo, com quem conversaram. “Ele nos disse onde tinha uma casa para alugar, por R$ 450, e onde procurar emprego. E conseguimos, em uma lanchonete. A proprietária iria nos pagar R$ 100 por mês para cada um, para fazermos de tudo na lanchonete. Era para começarmos hoje (segunda-feira)”, conta Mateus.
Mais tarde naquele dia, o casal decidiu ficar acordado para esperar
por Paulo na mesma viela. No entanto, foi Kely, mulher de Paulo, quem
também se aproximou para puxar conversa. “Ela também perguntou se éramos
drogados. Ela só confiou na gente porque tinha espírito meio de
hippie”, disse Mateus.
5º Dia (Domingo, 27)
Kely os levou para casa, deixou que tomassem banho e serviu refeições para eles. “Conversamos até de madrugada. Acordamos quase ao meio-dia (de domingo). Foi quando resolvemos olhar o Facebook e estavam lá todas aquelas reportagens sobre o nosso desaparecimento. Pensei: ‘Agora ferrou!’”, narrou Mateus.
Kely os levou para casa, deixou que tomassem banho e serviu refeições para eles. “Conversamos até de madrugada. Acordamos quase ao meio-dia (de domingo). Foi quando resolvemos olhar o Facebook e estavam lá todas aquelas reportagens sobre o nosso desaparecimento. Pensei: ‘Agora ferrou!’”, narrou Mateus.
Ao perceberem a situação, Paulo e Kely pediram os telefones dos pais ao
casal, alegando que iriam avisar que os filhos deles estavam bem e para
não se preocuparem. Em seguida, saíram, dizendo que iriam fazer compras
em um supermercado. “Quando eles voltaram, estavam com os nossos pais.
Foi aquela choradeira”, recorda Mateus.
Depois do reencontro, as famílias seguiram para uma delegacia para
registrar o reaparecimento do casal de adolescentes. De volta às suas
respectivas casas, Mateus e Kelly demonstram estarem ainda mais próximos
e tentam tirar lições de todo esta aventura.
“Sabe que eu acho que ele é meio doido, aventureiro. Mas sou um
pouquinho aventureira, senão, não toparia, não. O que eu aprendi é que
ainda não sei bem o que é o mundo, mas esses cinco dias não vou dizer
que foi uma m... Não foi, porque eu estava com ele; porque senão teriam
sido. Mas realmente fugir de casa, viver na rua não é o que agente
espera. Você vai passar frio, vai passar fome, vai pegar gripe e meu
conselho é esse: para ninguém fugir de casa”, ensina Kelly.
“A experiência foi boa, principalmente a de dormir junto com ela. Ela
tinha umas alucinações durante a noite. (...) Mas a gente pensou que a
vida era boa lá fora, que a gente iria acampar normal, iria fazer fogo,
para fazer comida na panela que a gente levou, mas não foi. Deu muito
medo, você ficar sem comida, ficamos com muita dor por causa da bagagem,
dor nas costas, nos pés, na cabeça, pegamos muito frio. A maior parte
do caminho foi de muita preocupação por causa dela, com medo de que nos
assaltassem, perdi horas de sono. Depois de saber que estavam atrás de
nós, veio aquele clima de esperança que iriam nos deixar juntos. Mas o
que estava ruim foi resolvido. Melhorou bastante o diálogo”, confirma
Mateus.
“Na minha casa também”, completa Kelly, sem desgrudar a mão da do namorado durante toda a entrevista.
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