Brasileiros cruzam fronteira atrás de ouro. Exploração já retirou quase R$ 1 bilhão, e deixa rastro de desmatamento e poluição na Floresta Amazônica.
Uma corrida do ouro na Floresta Amazônica. A reportagem especial do
Fantástico deste domingo (28) mostra como milhares brasileiros cruzam a
fronteira com a Guiana Francesa atrás de ouro.
Os garimpos ilegais retiram quase R$ 1 bilhão do meio da floresta, e
deixam um rastro de desmatamento e poluição. Atrás dos garimpeiros
formam-se cidades do crime: preços abusivos, tráfico de drogas,
prostituição. De todo o ouro que eles tiram do solo, no final não sobra
quase nada.
O repórter Pedro Bassan acompanhou com exclusividade a maior ação
conjunta das forças policiais e militares da França e do Brasil para
combater essa máfia do ouro.
Estradas e trilhas que não estão no mapa. Comboios que não podem
falhar. Viagens clandestinas pelos igarapés. Um mundo escondido no
coração da Amazônia. São os garimpos ilegais da Guiana Francesa.
“E aí Jardielzão agora você vai para a Globo, meu amigo. Diga alguma coisa.”, diz um garimpeiro ao filmar outros garimpeiros.
No garimpo ninguém fala muito. Primeiro, porque está todo mundo
ocupado. “Olha o feijão está mexendo com ouro ali dentro da bateia.
Chega a estar jogando é de saco”, diz um garimpeiro ao filmar outro
colega trabalhando.
Depois, falar para que se um gesto já é suficiente? “Feijão pegou ‘a parada’. Mais de um quilo de ouro aí”.
E garimpeiro também fala pouco porque aqui um sorriso diz tudo.
“Jardiel está segurando a bateia de ouro”, diz o garimpeiro em um outro
vídeo.
Em busca da promessa do Eldorado
Em busca da promessa do Eldorado
Histórias como a de Feijão e Jardiel fazem a fama dos garimpos da
Guiana Francesa. De boca em boca correm lendas de riqueza. De celular em
celular correm fotos reluzentes, ostentando um brilho que parece fácil
de ganhar. Línguas de ouro a céu aberto, metal precioso rolando montanha
abaixo.
Em busca dessa promessa do Eldorado, cerca de 10 mil garimpeiros foram
do Brasil até lá e se espalharam por 479 garimpos clandestinos. Um rio
em que as duas margens parecem iguais, os olhos não reconhecem
fronteira. Mas é uma linha bem conhecida do mapa, um lugar de que todo
brasileiro já ouviu falar: Oiapoque. O monumento diz: o Brasil começa
aqui.
E do outro lado do rio, as placas dizem que a Europa começa ali. A
Guiana Francesa é território francês, o único pedaço da América do Sul
que não se tornou um país independente. A ponte sobre o Rio Oiapoque
está pronta há três anos, mas o Brasil até hoje não inaugurou as
instalações da Receita e nem da Polícia Federal.
Apenas 400 metros separam o Brasil da França. Do lado de lá estão o
euro e o ouro, mas esta é uma fronteira que ninguém cruza em linha reta.
Milhares de brasileiros já entraram na Guiana Francesa arriscando a
vida em pequenas canoas, conhecidas como voadeiras. Elas não só cruzam o
rio, como vão até Caiena, a capital da Guiana, em uma viagem de 12
horas pelo mar, dividindo espaço com embarcações muito maiores. No
local, circulam histórias de naufrágios e mortes. “História de gente que
vai e não chega”, conta um homem.
A Polícia Civil do Amapá tenta combater esse transporte ilegal. Cai a
noite e essa é a hora preferida pelos coiotes para cruzar o rio. A
polícia está no local, a embarcação vai sair com seis policiais e o
Fantástico foi com eles atrás das voadeiras.
As águas são violentas. Muitos coiotes recebem os policiais a tiros.
Depois de uma noite inteira vasculhando a escuridão, nenhum sinal das
embarcações.
Poucas horas depois, a polícia descobre que um coiote vai partir à luz
do dia. Léo Gomes Oliveira cobra R$ 200 de cada passageiro que vai
transportar, e recebe adiantado. Ele parte de Oiapoque tentando não
chamar atenção, mas já foi descoberto. A lancha da polícia é bem mais
rápida, mas é preciso alcançar o barco antes que ele entre em território
francês. O barco já foi identificado, e a lancha da polícia faz o
acompanhamento à distância esperando o melhor momento para fazer a
abordagem.
O sol vai caindo. Se a noite chegar, o coiote vence. O barco se
escondeu atrás de uma ilhota, provavelmente eles perceberam a
aproximação, e agora vai ser feita a abordagem.
“Vai, acelera, acelera, acelera”, diz um policial para o piloto da lancha da Polícia Civil.
Mãos ao alto. A resposta revela um barco superlotado, com mercadorias espalhadas, passageiros amontoados e olhares indefesos.
Policial: Tão indo para onde? Para Caiena? Para Caiena?
Passageiros do barco: É, é. Para Caiena.
Policial: Para quê? Trabalhar com quê?
Passageiros do barco: Obra.
Policial: Garimpo?
Passageiros do barco: Não.
Policial: Quem é o piloto, você?
Piloto do barco: É.
Policial: Você sabe que tá transportando pessoas em excesso aqui, excesso de carga. Você é habilitado? Você tem habilitação?
Piloto do barco: Tem não.
Policial: Carta marítima?
Piloto do barco: Estou tirando.
Policial: O senhor está preso, atentado contra a segurança fluvial. O senhor está preso.
Passageiros do barco: É, é. Para Caiena.
Policial: Para quê? Trabalhar com quê?
Passageiros do barco: Obra.
Policial: Garimpo?
Passageiros do barco: Não.
Policial: Quem é o piloto, você?
Piloto do barco: É.
Policial: Você sabe que tá transportando pessoas em excesso aqui, excesso de carga. Você é habilitado? Você tem habilitação?
Piloto do barco: Tem não.
Policial: Carta marítima?
Piloto do barco: Estou tirando.
Policial: O senhor está preso, atentado contra a segurança fluvial. O senhor está preso.
Passageiros detidos dificilmente desistem da viagem
O assistente do barqueiro também. Eles levavam a bordo sete toneladas de equipamentos e 15 passageiros. A princípio todos negam que estivessem a caminho de um garimpo. Mas, quando a carga é revelada, fica impossível esconder.
O assistente do barqueiro também. Eles levavam a bordo sete toneladas de equipamentos e 15 passageiros. A princípio todos negam que estivessem a caminho de um garimpo. Mas, quando a carga é revelada, fica impossível esconder.
“Como você viu, ali tem copo de bomba, mangueira de pressão, então isso
a gente não pode dizer que não vai para dentro do garimpo, isso está na
cara que vai para o garimpo”, diz o carpinteiro Ivanildo Farias dos
Anjos.
O piloto do barco confirma. “O sustento da cidade é do garimpo, se
acabar o garimpo aqui não tem nada”, diz o barqueiro Léo Gomes de
Oliveira.
Os passageiros são liberados, mas dificilmente vão desistir da viagem.
“O passageiro é uma vítima desses aliciadores, porque envolve coisas
muito maiores, tráfico de pessoas, tráfico de mulheres para fins de
exploração sexual”, afirma o delegado da Polícia Civil do Amapá Charles
Corrêa.
Quem não pode ir de barco encontra muitos outros caminhos. As viagens
estão gravadas em vídeos que a polícia encontrou nos celulares e câmeras
abandonados pelos garimpeiros no meio da floresta. Algumas pessoas
passam até uma semana andando na mata.
No fim da jornada, o que espera por eles é a vida dura da floresta. As
barracas são precárias, sem paredes. O acampamento ideal para os
garimpeiros é totalmente encoberto pelas árvores. Do alto, parece que
eles não existem.
“Sem palavras, não pode conversar muito. Olha só o buraco, vou mostrar
onde eles descem por essa corda”, revela um garimpeiro ao gravar vídeo.
Poços de 30 metros sem nenhuma segurança. Mulheres também mergulham
nessa escuridão. “Bom, gente, eu estou descendo aqui dentro de um poço.
Olha só a profundidade desse um poço. Está cada vez ficando mais longe,
mais longe”, mostra uma mulher.
Pela cordinha também chegam água e comida, porque o turno de trabalho é de 24 horas. “Aqui é o ouro, só o ouro”.
Garimpeiros retiram da terra 10 toneladas de ouro por ano
Quem trabalha nos barrancos pelo menos vê a luz do sol, mas só ouve um motor que ensurdece. Anualmente, os garimpeiros tiram da terra 10 toneladas de ouro, que valem cerca de R$ 900 milhões. Os sonhos de riqueza são iguais aos de qualquer garimpo. A diferença é que, na Guiana Francesa, todo garimpeiro tem um olho na terra e outro no céu.
Quem trabalha nos barrancos pelo menos vê a luz do sol, mas só ouve um motor que ensurdece. Anualmente, os garimpeiros tiram da terra 10 toneladas de ouro, que valem cerca de R$ 900 milhões. Os sonhos de riqueza são iguais aos de qualquer garimpo. A diferença é que, na Guiana Francesa, todo garimpeiro tem um olho na terra e outro no céu.
Quem combate o garimpo ilegal são os gendarmes, uma espécie de Polícia
Militar da França. As operações de helicóptero partem de Caiena. São
quatro helicópteros e 60 policiais. Do alto é mais evidente o contraste
entre a beleza da Amazônia e a devastação provocada pela febre do ouro.
Um garimpo foi escolhido pelos policiais porque está crescendo demais.
Os policiais muitas vezes são recebidos a tiros. Por isso, dois
atiradores de elite descem na frente e vão abrindo caminho para os
soldados do Exército que vêm apoiar a missão.
Comparado com outros na Guiana, o garimpo era pequeno, e agora deixou
de existir. Mas a natureza vai levar muito tempo para se recuperar do
imenso estrago que 15 pessoas fizeram no coração da floresta.
Os policiais destroem os equipamentos. O garimpo era dos mais bem
equipados, com fogão, freezer e até parabólica. Itens que são um luxo na
mata, ao lado do banheiro improvisado na beira do rio. Na barraca
dormitório, as roupas no varal indicam uma fuga às pressas.
“Balbino, Branquinho, Gordinho, Preto, Pedro, Rosa, Rodrigo, Coroa e
Demi: os moradores do garimpo”, diz o repórter ao identificar uma lista
dentro do garimpo abandonado.
Eles saíram correndo, mas conseguiram salvar o item mais valioso do
acampamento: a ponta do fio da antena do rádio que eles levaram com
eles. Mas eles não foram muito longe. O rádio está no meio do caminho, e
é bem pesado. Realmente ninguém consegue carregar isso muito tempo no
meio do mato. E eles podem estar bem perto.
Operação da polícia encontra provas importantes
Em uma outra operação, a polícia capturou um vídeo. Sem medo, dois garimpeiros passam horas e horas a poucos metros dos policiais.
Em uma outra operação, a polícia capturou um vídeo. Sem medo, dois garimpeiros passam horas e horas a poucos metros dos policiais.
O pessoal do garimpo não parece tão tranquilo e deixou para trás provas
importantes: números de telefone, contas bancárias e um registro da
produção. Em dois meses, foram quase três quilos de ouro. Nos cadernos,
ficou gravado também o sonho de um garimpeiro.
Nas horas de folga, o autor do desenho ia imaginando uma casa. Não era
nenhuma mansão, mas tinha espaço, conforto, e piscina no quintal. No fim
sobrou um pedaço de papel, mais uma ilusão desfeita pelo sistema cruel
da garimpagem ilegal.
O ouro encontrado vai embora rápido: 70% fica com o dono do garimpo,
que é quem investiu nas máquinas. Na cantina, vai ficando o que sobra.
Um grama de ouro vale um pouco mais de R$ 90. Um quilo de farinha custa
um grama de ouro. Uma garrafa de cachaça, 3 gramas.
“A única coisa vendida a preços baratos é a cocaína, cujo uso permite
trabalhar em condições abomináveis: no escuro, sem oxigênio, a 100% de
umidade, cavando a terra durante todo o dia. Nós nunca vimos um caso
sequer de um garimpeiro que tenha voltado milionário para o Brasil”,
explica o chefe de gabinete do governo da Guiana Francesa, Xavier Luque.
Em outro lugar onde os garimpeiros deixam muito dinheiro não existe
tabela de preços. A exploração da prostituição e o tráfico de mulheres
são alguns dos crimes mais comuns no garimpo. Quando a tão sonhada
riqueza vai embora, outro crime entra em cena. “É um tipo de escravidão
moderna, que eles ficam vezes à mercê daqueles patrões, do dono das
máquinas. Acabam sumindo, morrendo ali mesmo, sem que até os familiares
saibam”, afirma o delegado-geral da Polícia Civil do Amapá Tito
Guimarães.
Junto com os sonhos desfeitos, a natureza também se desfaz. Ao todo,
200 quilômetros de rios já estão poluídos e 24 mil quilômetros quadrados
já viraram manchas de deserto na Amazônia.
De vez em quando a melodia de um pássaro corta o ar, para lembrar que
esta é a maior floresta do mundo. Mas esse canto é cada vez mais raro.
Parece que até os pássaros já aprenderam que no garimpo, ninguém fala
muito.
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